Blockchain governance - Parte 3

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Parte 3

Tipos de arquitetura

As arquiteturas de blockchain podem ser categorizadas quanto à abertura de validação de transação (validar/confirmar) e a abertura de participação (leitura/gravação) nas transações (European Commission, 2019). A arquitetura de governança correta é fundamental para fornecer a liberdade e o poder que os usuários exigem:

  • Sem permissão (permissionless): qualquer pessoa com o hardware certo pode validar ou confirmar transações.
  • Permissionada (permissioned): apenas alguns nós selecionados podem validar ou confirmar transações.
  • Público: qualquer pessoa pode participar das transações usando o protocolo.
  • Privado: apenas os participantes selecionados podem participar das transações usando o protocolo.

**Tabela 1 – Arquétipos de blockchain**

Os pontos pretos são os nós de validação, ou seja, eles são capazes de validar as transações na rede e participar do mecanismo de consenso. Os pontos brancos representam os participantes da rede no sentido de que são capazes de realizar transações, mas não podem participar da validação ou dos mecanismos de consenso. O anel indica que apenas os nós dentro do anel podem ver o histórico de transações. As visualizações sem anel significam que qualquer pessoa com ligação à Internet pode ver o histórico de transações da blockchain (European Commission, 2019).

Entre as blockchains permissionadas e em produção, aquela que chamou a atenção de todos foi a Facebook Libra. Libra afirma fornecer moeda digital, mas seu whitepaper mostra a intenção de fornecer um serviço de banco digital. A rede não está aberta a nenhum voluntário que deseje co-participar e ajudar a proteger os blocos. Para se associar, a empresa deve comprar direitos de voto, sendo que USD 10 000 000 dão direito a um voto (Facebook, 2019).

A Gestão de Reserva da Libra executará a Política de Gestão de Reserva, que inclui o acompanhamento do “processo de cunhagem e queima de Libra”. À medida que a moeda fiduciária entra na economia, a reserva cresce, a associação cede Libra de acordo com isso, e a reserva é investida em ativos de baixo risco e alta liquidez. Provedores de liquidez terceirizados terão permissão para trocar Libra por ativos na reserva (Facebook, 2019). É muito próximo do que Hayek imaginou em um tempo sem a tecnologia para remover o terceiro de confiança, quando ele escreveu que chamaria as instituições livres para emitir notas simplesmente como ‘bancos’, ou ‘bancos emissores’ e “anunciaria a questão de certificados ou notas não remuneradas e a disponibilidade para abrir contas correntes à ordem, em termos de unidade” (Hayek, 1990, p. 46).

A Gestão da Rede Libra terá a responsabilidade pela definição do “processo de gerenciamento do repositório de controle de fonte de especificação do protocolo Libra, incluindo o processo de revisão e aceitação de alterações no protocolo” e os direitos de “explorar tecnologias de blockchain sem permissão e recomendar os caminhos da diretoria e do conselho para a transição para essa tecnologia”, embora essa transição possa nunca acontecer. O Conselho da Libra publicará recomendações sugerindo a mudança de regras que resultará em uma ‘bifurcação’ (fork), permitindo que o conselho proponha mudanças significativas no protocolo da Libra (Facebook, 2019).

Em uma rede permissionada, como a Libra, a entidade que controla a maioria dos nós pode congelar contas, bloquear pagamentos e outras mensagens. Em redes sem permissão, como Bitcoin e Decred, a maioria dos nós decide as regras de consenso e as transações aceitáveis. Desde que os nós honestos mantenham a cadeia mais longa, a rede não depende de um terceiro de confiança, conforme mostrado na próxima seção.

Governança do Bitcoin e regras de consenso

Uma das definições dadas por Rhodes (2007) para governança de rede é “interações semelhantes a jogos, enraizadas na confiança e reguladas por regras do jogo negociadas e acordadas pelos participantes da rede”. Em relação à administração pública e às políticas públicas, ele explica ainda que a “literatura sobre governança explora como a autoridade informal das redes complementa e suplanta a autoridade formal do governo. Ele explora os limites do estado e busca desenvolver uma visão mais diversa da autoridade do estado e seu exercício.” (Rhodes, 2007, p. 4). Esta seção aborda a governança de uma perspectiva privada, mas as seções a seguir também abordam a governança pública.

Em uma rede ponto a ponto, os blocos são transmitidos e podem não atingir todos os nós. Os nós consideram a cadeia mais longa como válida e trabalharão para aumentá-la. Se um nó recebe dois blocos diferentes, eles trabalham no primeiro, mantendo o outro caso ele se torne a cadeia mais longa. Nem todos os nós são mineradores, apenas aqueles que trabalham para estender a cadeia mais longa, validando os blocos. Outros nós apenas mantêm uma cópia do livro-razão distribuído (Nakamoto, 2008).

Em uma rede descentralizada, onde os nós não se conhecem, mudanças nas regras de consenso, como o tamanho do bloco, acontecem por meio de sinalização de bloco. Os mineradores usam forums de mensagens online para concordar com um sinal binário a ser transportado dentro dos blocos em um dterminado intervalo, procurando construir a maioria. No caso da maioria, as mudanças são implementadas e mantidas na cadeia mais longa, assim, o tempo e a energia elétrica gastos serão recompensados (Nakamoto, 2008).

A minoria deve escolher aceitar as mudanças da maioria ou “bifurcar” (fazer um fork na rede). Como os nós mantêm uma cópia da blockchain, eles possuem todo o histórico. Um hard fork da blockchain mantém o histórico de blocos e transações até aquele ponto, mas deliberadamente passa a trabalhar em uma cadeia que não será aceita pela maioria por causa de suas regras e características, criando assim outra rede que terá seu próprio valor de utilidade e moedas que terá valor de mercado e nome diferentes. A governança do Bitcoin é baseada exclusivamente na prova de trabalho (proof-of-work) como ferramenta de tomada de decisão e a Figura 2 mostra um fork da blockchain na rede Bitcoin.

Figure 2 – Bitcoin network right after the Bitcoin Cash 'fork'
Figura 2 – Rede do Bitcoin logo após o 'fork' do Bitcoin Cash 'fork'
Fonte: elaboração própria

A governança da blockchain também pode ser capturada pelo produtor do equipamento de mineração, um player que tem incentivos econômicos para controlar como as regras da blockchain devem mudar, direcionando as decisões para sua direção preferida. Este é o caso da Bitmain Technologies, uma empresa privada chinesa que domina a indústria de hardware de mineração de criptomoedas com base em ASIC, com aproximadamente 75% de participação no mercado global, e também o maior player no mercado de serviços de pool de mineração. “A Bitmain possui e opera totalmente dois dos maiores pools de mineração, AntPool e BTC.com, e também é o principal investidor em outro grande pool de mineração, a ViaBTC. Muitos dos outros grandes reservatórios de mineração também são parceiros de negócios da Bitmain. (…) Ao adquirir uma grande fatia do mercado de serviços de pool, o produtor de equipamentos tem uma influência desproporcional na governança da blockchain.” (Ferreira, Li e Nikolowa, 2019).

Privacidade e fungibilidade

Considerando as disposições do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) para a minimização, pseudonimização e anonimização de dados, especificamente o artigo 5 (1), alíneas (b) e (c), os dados pessoais devem ser coletados e processados com fins legítimos e limitados a quê é necessário (Parlamento Europeu, 2016). Ao mesmo tempo, os governos aumentam o processamento de dados pessoais para controlar contribuições políticas, doações estrangeiras, para combater o terrorismo, lavagem de dinheiro e aumentar a tributação e evitar a evasão de dinheiro. “Os comerciantes devem ser cautelosos com seus clientes, importunando-os por mais informações do que de outra forma precisariam” (Nakamoto, 2008, p. 1), por causa dos regulamentos e para evitar fraudes.

As blockchains permitem a troca de ativos digitais minimizando ou evitando completamente o processamento de dados pessoais, contando com criptografia de chave pública para prevenir fraudes, o que aumenta a privacidade, mas reduz o controle imposto aos indivíduos pelo governo. As soluções de privacidade envolvem a execução de uma cópia local da blockchain e também do block explorer, um aplicativo web capaz de exibir graficamente dados da blockchain em formato legível, porque os servidores e aplicativos web podem registrar endereços IP e permitir a geolocalização dos usuários. As transações de blockchain também podem ser roteadas através da rede Tor, também chamada de ‘deep web’, uma rede criptografada e sem registros de conexões, permitindo transações, votação eletrônica e contribuições políticas em ditaduras e países em dificuldades. As tecnologias de mistura (mixing) codificadas em blockchains permitem embaralhar as transações em quantidades menores, misturando várias entradas diferentes antes de serem enviadas para uma carteira, proporcionando fungibilidade e reduzindo significativamente a probabilidade de identificação.

Blockchain além do dinheiro digital

Embora blockchains geralmente estejam relacionadas a dinheiro digital, a tecnologia permite outras aplicações como cartório digital, compras e prestação de contas transparentes e votação eletrônica.

Identidade e a máquina de timestamping

Em 2007, a Estônia desenvolveu uma tecnologia de blockchain que “torna impossível alterar os dados que já estão na blockchain.” Com o carimbo de data/hora, “a história não pode ser reescrita por ninguém e a autenticidade dos dados eletrônicos pode ser matematicamente comprovada”. O registro de data e hora funciona criando um hash de uma informação e ancorando esse hash na blockchain. Assim, qualquer pessoa pode comprovar que uma informação ou documento já existiu em algum momento, como um notário digital. A Estônia afirma que hackers, administradores de sistema e nem mesmo o próprio governo poderiam manipular os dados de maneira não rastreável (Enterprise Estonia, 2019).

Compras governamentais e programas de inovação

A fraude e o abuso do dinheiro dos contribuintes em compras governamentais e programas de inovação são comuns e não é possível determinar quanto dinheiro dos contribuintes é desperdiçado a cada ano. Um relatório da OCDE de 2018 mostra que 42% dos empregados de empresas estatais (SOEs) participantes de uma pesquisa responderam que práticas corruptas ou irregulares ocorreram em suas empresas nos três anos anteriores. Como as SOEs representam aproximadamente 22% das maiores empresas do mundo, esse problema não pode ser subestimado (OCDE, 2018). Ele continua explicando que os maiores obstáculos enfrentados pelas SOEs estão relacionados ao comportamento e aos relacionamentos humanos. Os três primeiros obstáculos em ordem de aparecimento são: a falta de uma cultura de integridade no setor político e público; falta de conscientização dos funcionários sobre a necessidade ou prioridade da integridade; e comportamento oportunista dos indivíduos (OCDE, 2018).

A transparência minimiza o problema de assimetria de informações, mas não pode resolver o problema de agência ou reduzir conflitos de interesses e desequilíbrios de poder criados pelo comportamento humano. Para esses problemas, a votação eletrônica pode ser útil.

Votação eletrônica e novos modelos de governança

Desequilíbrios de poder e assimetrias de informação entre governos e cidadãos levaram historicamente a profundas desigualdades sociais e estruturas de poder hierárquicas, muitas vezes tornando uma tarefa árdua alcançar ideais não dominantes. Governos corruptos e ditaduras sempre podem usar o sistema e as regras contra os cidadãos: “as regras de votação podem intensificar os riscos existentes no sistema que incluem a complexidade das regras de votação, o custo do voto, as horas limitadas de votação presencial, urnas desatualizadas, problemas de registro de eleitores, desafios com a votação pelo correio, atrasos na contagem dos votos e a possibilidade de erros administrativos que invalidam ou - talvez ainda pior - indicam um voto em um candidato diferente daquele pretendido pelo eleitor”. Alguns desses problemas podem ser mitigados com a tecnologia blockchain, porque ela mantém uma trilha de auditoria imutável com registro de data e hora, implementando verificações e balanços em todo o processo eleitoral. É possível verificar no voto, qual decisão foi tomada e quando, sem vincular uma transação de votação a um determinado eleitor (Johnson, 2019, p. 343).

Governança pública e privada dependem de escolhas como democracia direta e democracia representativa. A governança pública depende de bens públicos fornecidos localmente (financiados por um imposto geral pago pelos residentes) e de externalidades transfronteiriças positivas. As preferências para consumo público e maior tributação dependem da capacidade do participante em pegar carona em outras regiões ou participantes. No caso da governança privada, depende do tesouro privado, como é financiado e o que financia (Redoano & Scharf, 2004).

A governança baseada em blockchain pode resolver e substituir as organizações centralizadas e o problema de escala, onde o Estado e a democracia representativa têm sido a solução até agora, usada para alcançar consenso e coordenação entre grupos heterogêneos ou distantes de pessoas, preenchendo a lacuna para interações mútuas. Mas os governos estão expostos a riscos como falta de transparência, corrupção, captura regulatória, abuso de poder e autoritarismo, devido à concentração de poder, o que leva a outro problema: ‘Quis custodiet ipsos custodes?’ (Quem vai vigiar os vigilantes?) (Atzori, 2015, p. 6).

Como parte de um fenômeno antigovernamental nas democracias ocidentais durante a última década, a governança pública evoluiu para se tornar mais colaborativa, descentralizada e multistakeholder para “atender à necessidade crescente de experimentar um modelo empresarial de liderança, encontrando soluções inovadoras para a má gestão do Estado e da burocracia além das fronteiras organizacionais e institucionais tradicionais” (Atzori, 2015, p. 13). Vários países já estão usando soluções baseadas em blockchain para melhorar a governança e a confiança no voto:

Suiça

A emissão de uma identidade governamental baseada em blockchain, certificada pela cidade de Zug, começou em 15 de novembro de 2017 e é chamada de uPort. O aplicativo vincula um endereço criptográfico único e imutável à carteira do usuário local. O objetivo era expandir seu alcance para outros serviços públicos, como e-votação, aluguel de bicicletas, empréstimo de livros, declarações de impostos ou pagamentos de estacionamento (European Commission, 2019). O teste de votação eletrônica começou em 25 de junho de 2018 e foi um sucesso, envolvendo cidadãos que colocaram suas vozes em votação consultiva via smartphone sobre uma questão inventada (Meyer, 2018).

Estônia

A blockchain da Estônia registra a propriedade de títulos conforme relatado pelo Central Securities Depository (CSD). O sistema emite ativos de direito de voto e ativos de token de voto para cada acionista. Os tokens de voto (mineração de prova de participação) podem depositar seus votos em itens da agenda da reunião se os tokens possuem direitos de voto (Nasdaq, 2017).

Tailândia

Em um processo de votação eletrônica ao vivo realizado de 1 a 9 de novembro de 2018, o Partido Democrata da Tailândia elegeu seus líderes em uma eleição primária e se tornou o primeiro partido político a usar a tecnologia blockchain para permitir que mais de 120.000 membros do partido votassem de forma transparente (Nasdaq, 2018).

Brasil

O aplicativo VotoLegal usou a blockchain do Decred não para registrar votos, mas para registrar doações de campanha e manter os candidatos rastreáveis, rastreando os números de doações e quem era o doador (AppCívico, 2018). O Decred Project será avaliado na próxima seção.

Referências

AppCívico. (2018). Voto Legal Blockchain Explorer. Obtido do Voto Legal: https://blockchain.votolegal.com.br/

Atzori, M. (2015, December 1). Blockchain Technology and Decentralized Governance: Is the State Still Necessary? Obtido do SSRN: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2709713

Enterprise Estonia. (2019). KSI blockchain. Obtido do https://e-estonia.com/solutions/security-and-safety/ksi-blockchain/

European Commission. (2019). Blockchain for digital government. Luxembourg: Publications Office of the European Union. Obtido do EU Science Hub: https://ec.europa.eu/jrc/en/publication/eur-scientific-and-technical-research-reports/blockchain-digital-government

European Parliament. (2016). EU General Data Protection Regulation (GDPR): Regulation (EU) 2016/679. Obtido do Eur-Lex: https://eur-lex.europa.eu/eli/reg/2016/679/oj

Facebook. (2019). The Libra Association. Obtido da Libra: https://libra.org/en-US/association-council-principles/#libra_association_council

Ferreira, D., Li, J., & Nikolowa, R. (2019, March 25). Corporate Capture of Blockchain Governance. European Corporate Governance Institute (ECGI) - Finance Working Paper No. 593/2019. Obtido do: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3320437

Hayek, F. A. (1990). Denationalisation of money: The argument refined (3rd ed.). The Institute of Economic Affairs. Obtido do Ludwig von Mises Institute: https://mises.org/library/denationalisation-money-argument-refined

Johnson, D. (2019, September 18). Blockchain-Based Voting in the US and EU Constitutional Orders: A Digital Technology to Secure Democratic Values? European Journal of Risk Regulation, 10(2), 330–358. Obtido do: https://doi.org/10.1017/err.2019.40

Meyer, D. (2018, July 03). Blockchain Voting Notches Another Success—This Time in Switzerland. Obtido da Fortune: https://fortune.com/2018/07/03/blockchain-voting-trial-zug/

Nakamoto, S. (2008, October 31). Bitcoin: A peer-to-peer electronic cash system. Obtido do Nakamoto Institute: https://nakamotoinstitute.org/bitcoin/

Nasdaq. (2017, January 23). Is Blockchain the Answer to E-voting? Nasdaq Believes So. Obtido da Nasdaq: https://www.nasdaq.com/articles/blockchain-answer-e-voting-nasdaq-believes-so-2017-01-23

Nasdaq. (2018, November 13). Thailand Uses Blockchain-Supported Electronic Voting System in Primaries. Obtido da Nasdaq: https://www.nasdaq.com/articles/thailand-uses-blockchain-supported-electronic-voting-system-primaries-2018-11-13

OECD. (2018, August 27). State-Owned Enterprises and Corruption: What Are the Risks and What Can Be Done? Obtido do OECD: https://www.oecd.org/corporate/SOEs-and-corruption-what-are-the-risks-and-what-can-be-done-highlights.pdf

Redoano, M., & Scharf, K. A. (2004, March). The political economy of policy centralization: direct versus representative democracy. Journal of Public Economics, 88(3-4), 799-817. Obtido do: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0047272703000173

Rhodes, R. A. (2007, April 17). Understanding Governance: Ten Years On. Organization Studies, pp. 1-22. Obtido do: https://www.researchgate.net/publication/233870082_Understanding_Governance_Policy_Networks_Governance_Reflexivity_and_Accountability